Sartre e Simone de Beauvoir, com Sophia de Mello Breyner, em Portugal, 1975.
A revolução
portuguesa foi o acontecimento mais surpreendente e comovente destes últimos anos.
Jean-Paul Sartre, 1975
Jean-Paul Sartre aterrou em Portugal em março de 1975. “Queria
saber exatamente o que tinha acontecido” e o que estava a acontecer neste país
em efervescência democrática, após 48 anos de ditadura. Não muito entusiasmado
com os seus encontros com os militares e os estudantes, “teve muito bons
contactos com os operários de uma fábrica em autogestão, próximo do Porto”,
como testemunharia a sua mulher, a escritora Simone de Beauvoir, que o acompanhava.
A fábrica perto do Porto ficava ao fundo da rua Caldeiroa, em Guimarães.
Era a Cooperativa Sousabreu (depois, Fogo Posto) e foi uma das descobertas que
mais impressionaram o filósofo francês, na sua imersão no peculiar laboratório político
e social em que Portugal estava transformado.
Por aqueles dias, a Revolução dos Cravos projetava-se
internacionalmente como uma experiência democrática inspiradora, atraindo o
interesse de muitos intelectuais, que aqui aportavam para observar o que acontecia:
além de Sartre e Beauvoir, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Marguerite
Yourcenar, Heinrich Böll, Alain Touraine, Jean-François Revel, Jean Daniel,
Hans Magnus Enzensberger,
e muitos outros, mais ou menos conhecidos, descobriram Portugal, entre o
espanto e o deslumbramento.
Aquela Revolução foi diferente de todas as outras. Poderia não ter
sido mais do que um golpe de Estado militar, se o povo, educado para a
obediência, mas cansado de obedecer, não tivesse ignorado os que lhe mandavam
ficar em casa, ocupando as ruas e fazendo-se senhor do seu destino.
Os primeiros dias de uma revolução costumam ser tempo de incerteza
e instabilidade. Os vencidos conspiram para voltar para trás, os vencedores
dividem-se quanto ao que fazer para seguir em frente. Para derrubar um regime,
basta um dia. Para reconstruir um país, muitos anos são necessários.
Assim foi em 1820 — derrubado o absolutismo, passaram 14 anos de conspirações,
golpes, contragolpes, usurpação, guerra civil, até que o liberalismo se pudesse
afirmar vencedor (e ainda seria necessário chegar a 1851, para que o regime se
consolidasse definitivamente). Em 1910, a situação repetiu-se. Nos dias que se
seguiram ao 5 de Outubro, entre convictos e adesivos, os portugueses eram quase
todos republicanos, mas não se entendiam quanto à República que queriam
construir. E assim se andou, até que, 16 anos decorridos, um general partiu de
Braga para estabelecer uma ditadura.
A instauração da democracia foi diferente. Tirando alguns saudosistas
que suspiravam pela ordem cadavérica do antigamente, aprendemos depressa o
valor da liberdade e da democracia. É verdade que persistiam as interrogações
quanto ao modelo de democracia que queríamos. Não faltaram divergências e
discussões. Era natural: os portugueses estavam cansados do pensamento único e
dos silêncios impostos. Ignorávamos para onde íamos, mas não tínhamos medo do
caminho.
Basta olhar para os rostos das fotografias de Simão Freitas, agora
em livro, para percebermos que os dias que se seguiram ao 25 de Abril foram
vividos com alegria e uma imensa esperança. Nenhuma data da História
contemporânea portuguesa se lhe compara.
E, no entanto…
Hoje vemos por aí quem, não morrendo de amores por cravos, padece
de nostalgia por um país sombrio que não conheceram, chegando a equiparar os
acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 ao 25 de Abril. O 25 de Novembro
foi um dos episódios do caudal de intentonas e inventonas que marcaram o pós-25
de Abril. Começou por ser um levantamento de paraquedistas, movidos por
questões de dignidade profissional, aproveitada por setores radicais da
esquerda militar para um ensaio pífio de tomada de poder, que termina com uma
tentativa de militares spinolistas, com o objetivo de limitar a liberdade e o
pluripartidarismo. Nenhum destes movimentos de sentido contrário teve sucesso.
No final de 1975, na sequência do Documento dos 9 (os verdadeiros
vencedores do 25 de Novembro) a democracia portuguesa já tinha as suas linhas
traçadas, que seriam consagradas na Constituição aprovada por todos os partidos,
com exceção do CDS, que se absteve, no dia 2 de abril de 1976, a outra data
fundadora da democracia surpreendente e comovente que é a nossa.
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