O país era soturno e triste, mas aquela manhã nasceu luminosa e
sem motivos para pressas. Cheguei atrasado à primeira aula da manhã. A
professora não pronunciou o “já tens falta” do costume. Estranhei. A aula de
ciências físico-químicas da minha turma do 4.º ano do Liceu Nacional de
Guimarães decorria num anfiteatro. Trinta rapazes, alguns deles já com barbas,
faziam figura de corpo presente. A professora, que era baixinha, vista de cima
parecia ainda mais pequena e frágil. Os alunos sabiam que detestava dar aulas
naquela sala, onde lhe faltava o estrado que elevava o docente dois degraus
acima dos alunos. A situação não era confortável para a professora e a turma, liderada
por alunos já com várias matrículas, alguns com um vasto currículo de mau
comportamento, não lhe facilitava a vida. Na sala, a professora representava a
autoridade a que já escasseava a força para se impor. Dos seus alunos, em medo,
nem respeito. A maior parte de nós não escondia não ter o menor interesse por aquilo
que ali se ensinava. Pobre mulher.
A certa altura, alguém disse que tinha ouvido no rádio que algo de
sério estava a acontecer em Lisboa e que pediam às pessoas para ficarem em casa.
No intervalo, corriam rumores desencontrados sobre os acontecimentos do dia.
O resto do dia foi passado a acompanhar as notícias. O dia
seguinte já tinha começado, quando a Junta de Salvação Nacional se apresentou e
o General Spínola leu uma proclamação ao país, em que começou por anunciar o
propósito de “garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu
todo pluricontinental”. O dia terminava com uma desilusão: a guerra em África,
que se sabia perdida, prometia continuar.
Mas a desilusão não se sobrepôs à alegria com que vivemos aqueles
dias iniciais.
Na manhã do dia 26 de abril de 1974, os estudantes do Liceu
fizeram frente à oposição do vice-reitor e organizaram uma manifestação que foi
engrossando à medida que percorria as ruas da cidade. Muitos de nós ainda não
tinham compreendido o alcance do momento histórico que estávamos a viver, mas
todos aprendemos depressa o que é a liberdade.
Desses dias inesquecíveis, ficou-me a lembrança da grande
manifestação no Toural e o discurso memorável de Santos Simões. E depois a
manifestação com que se receberam os militares que tinham participado na
revolução, no seu regresso ao quartel. E o primeiro 1.º de Maio, quando a
cidade foi submergida por um mar de gente como antes nunca se tinha visto.
Naqueles dias, éramos felizes e sabíamos.
Crescemos depressa, enquanto frequentávamos um curso acelerado de
ciência política experimental. Estávamos a mudar o mundo.
Celebrámos o primeiro aniversário da revolução com a festa da
democracia. Pela primeira vez, depois de meio século de ditadura, votava-se em
liberdade. A maior parte dos portugueses nunca tinha votado. Elegeu-se a
Assembleia Constituinte. No segundo aniversário, entrou em vigor a Constituição
da República, que consagrava a liberdade e a democracia representativa. Ultrapassada
a turbulência que sempre se segue às revoluções, o regime democrático entrava
em velocidade de cruzeiro e os dias de eleições passaram a ser, também eles,
dias de festa.
Porque o povo é quem mais ordena.
* * *
Noite de 10 para 11 de março de 2024.
A cidade adormeceu mergulhada num inesperado silêncio. Nem
foguetes, nem buzinas, nem cortejos de automóveis, nem vivas gritados no
Toural. Pela primeira vez, em quase meio século de democracia, as eleições não
acabaram em festa. Em Guimarães, ninguém teve motivos para celebrar os
resultados. Dir-se-ia que, desta vez, ninguém ganhou.
A democracia vive tempos desafiantes. Continua a fazer todo o
sentido evocar a palavra de ordem que Jorge Sampaio lapidou:
25 de Abril sempre.

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