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| Cidade e copos. (Gerada por IA) |
As memórias são como as cerejas: funcionam por associação, entrelaçando-se umas nas outras. Pela forma como se associam, permitem o reconhecimento de padrões com que se tecem as narrativas de interpretação do acontecido e a perceção da realidade presente. Quando percorro as ruas que me viram crescer, ativam-se os mecanismos da memória, que é feitas de muitos fios, nem todos convergentes.
Uma
destas noites, ao percorrer as ruas da velha Guimarães, dei comigo a evocar um
texto que escrevi para O Povo de Guimarães, ainda no tempo da máquina de
escrever, não muito distante daqueles dias em que as galinhas ainda tinham
dentes, com um título que se ajustava à urbe que agora contemplava: “A cidade
dos alcoólicos”.
Procurei
o tal texto. Para verificar, mais uma vez, que, tal como o sabor das cerejas,
as memórias nem sempre correspondem ao que esperamos — o título do texto era,
afinal, “A sociedade dos alcoólicos”. Nele tentava retratar alguns aspetos da vida
quotidiana em Guimarães entre os séculos XV e XVII. Entre eles, a alimentação:
Os homens dos fins da Idade Média comiam pouco e mal. Mas no beber
não eram pecos. A sua alimentação baseava-se no pão, nas papas de farinha, nos
caldos, no pescado seco, no vinho. E, se muitas vezes faltava o pão, ao ponto
de se assaltarem as tulhas dos rendeiros do rei, se o peixe rareava e se até as
couves para o caldo eram falheiras, o vinho, esse, nunca faltava e era a preços
altamente convidativos.
Com
base na análise dos registos dos preços a que, à época, se vendiam os géneros
em Guimarães, percebe-se que, para beber um litro de vinho, se gastava metade
do que custava um quilo de pão ou que um litro de azeite custava dez vezes
mais. Mas, o que mais chamava a atenção, eram as cerca de 60 tabernas e outros
locais de venda e consumo de vinho em atividade dentro das muralhas de
Guimarães no início do século XVII. Uma taberna por cada 50 homens , mulheres e
crianças que muravam no burgo.
Olhando
em volta, percebe-se que, nestas primeiras décadas do século XXI, Guimarães,
parece caminhar, às arrecuas, para o que foi no final da Idade Média. O Centro
Histórico está, literalmente, tomado pelas novas tabernas e estabelecimentos similares.
A cidade Património Mundial ameaça deixar de ser um lugar onde se quer viver,
para se tornar no sítio onde se vai para beber um copo. Ou vários.
Ao
contrário do saco das cerejas, o arquivo das memórias não tem fundo. Revisito
uma reportagem José Casimiro Ribeiro publicou, também no PG, naqueles dias do
início da década de 1980, cujo título — “Devolver Guimarães aos vimaranenses” —
resumia o programa de intervenção urbanística que seria posto em prática nas
décadas que se seguiram. Era o relato da apresentação pública, por Fernando
Távora e Matos Ferreira, do Plano Geral de Urbanização de Guimarães. Vinha ilustrado
com uma fotografia de uma praça vimaranense ocupada por automóveis, com uma
legenda lapidar: “o aço invadiu as praças”.
Por
aqueles dias, a aspiração dos urbanistas era retirar os automóveis do Centro
Histórico, devolvendo-o à fruição pública. A requalificação do Centro Histórico
tinha como ambição maior a requalificação de um modo de vida.
Com
o tempo, vamos percebendo que nos afastamos da cidade idealizada por Fernando
Távora. As praças icónicas, que ele devolveu aos vimaranenses, foram novamente
ocupadas pelo aço— agora já não dos automóveis, mas do mobiliário das
esplanadas que ganham cada vez mais espaço e descaraterizam as nossas praças.
“É
a economia, estúpido”, haverá quem repita, citando o marqueteiro de Bill
Clinton. Será, mas é também a vida da nossa cidade que se vai esboroando, para
lá da economia.
E
dou comigo a pensar se, afinal, vou continuar a defender a pedonalização e a redução
da circulação de automóveis das ruas da cidade. Se for para o espaço público
ser tomado por mais esplanadas, substituindo os automóveis e o comércio pela
indústria de comes e bebes, se calhar é melhor deixar estar como está.

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