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| No Bairro de Couros. (Foto: C. M. Guimarães) |
A notícia era sonante, mas foi recebida com uma estranha apatia: Guimarães tem uma rua feita de muitas ruas, vielas e travessas que a Unesco reconheceu como património mundial, a Rua de Couros, que vai do Trovador ao Cavalinho, da Ramada à Caldeiroa e à Madroa, o lugar onde ainda hoje perdura a memória dos surradores e curtidores que traziam o seu ofício entranhado na pele. A sua oficina eram os “tanques rasos ao chão”, onde se preparavam as peles com sucessivas demolhas em água simples, primeiro, depois em água temperada com cal viva, prosseguindo com a “descabelada”, em que lhe era retirado o pelo, a que se seguia novo banho amaciador com cal viva, para depois se descarnar e grosar, antes de nova imersão, agora em água adubada com dejetos de pombas e de cães (a “ahumada”), a que se seguiam em três ou mesmo quatro cascas (banhos) em água atascada com casca de carvalho, ao longo de vários meses, ao fim dos quais eram conduzidas aos secadouros. Depois de secas, as peles passavam às tábuas de surrar, onde eram raspadas para adquirirem uma espessura regular, sendo depois engraxadas com óleo de sardinha. E regressavam aos secadouros. Quando secas, eram metidas em dornas com água limpa, para serem lavadas “à perna”. E, até que a curtimenta se concluísse, ainda faltavam mais umas quantas operações: deleitar, engraxar, secar, bater ao mascoto, atravessar, granear e, novamente, surrar. Deste processo, que impregnava com as suas emanações pútridas as ruas e os que ali viviam e trabalhavam, resultavam os couros e os cabedais de diferentes qualidade, matéria-prima de sapateiros, seleiros, tamanqueiros, correeiros, e os resíduos orgânicos que, levados pelo rio de Couros, iam fertilizar a fecunda Veiga de Creixomil.
A
possibilidade de a Rua de Couros vir a ser integrada no espaço de Guimarães classificado
como património pela UNESCO seria vista como delirante, há pouco mais de uma
década. Mas hoje é uma realidade, como resultado de um processo de
requalificação iniciado exemplarmente na Ilha do Sabão e inspirado no
pensamento que Fernando Távora desenvolveu e aplicou no Centro Histórico de
Guimarães, com a preocupação de regenerar o velho burgo, acrescentando-lhe
qualidade e assegurando a continuidade de um modo de vida e de uma
sociabilidade muito vimaranense. Uma opção centrada em recuperar o património,
não para o musealizar numa redoma, mas para nele se continuar a viver, com mais
conforto, respeitando o passado, mas também o presente dos que o habitam, na
linha do que o arquiteto expressou há mais de quatro décadas, numa conferência
na Associação Convívio:
Muitos dos
prédios das zonas hoje mais degradadas da cidade devem ser conservados.
Todavia, a conservação do património não tem nada a ver com a conservação do
subdesenvolvimento, implicando uma revalorização social profunda. Nas casas
agora degradadas podem-se criar belíssimas condições habitacionais, sem que se
altere a estabilidade necessária à vida humana.
Infelizmente,
o pensamento humanista de Fernando Távora, que fez do Centro Histórico de
Guimarães um caso de estudo do urbanismo das cidades históricas, vai sendo obliterado
pelos efeitos do tempo, dos costumes e das políticas públicas, que não têm
demonstrado força suficiente para contrabalançar a pressão dos interesses
económicos. Os moradores que vão saindo, por vontade própria ou pelas leis da
vida, não são substituídos por outros moradores, excepto os residentes efémeros
que demandam as velha casas, antes de famílias endinheiradas, humildes ou
remediadas, transformadas em estabelecimentos hoteleiros com baixos custos de
licenciamento e manutenção e elevada rentabilidade, ao mesmo tempo que as mais
belas criações da regeneração do final do século XX, as acolhedoras praças de
Guimarães, são tomadas pelas esplanadas que aproveitaram os ventos da pandemia
para se espraiarem, e que já nem sequer respeitam, com um mínimo de
distanciamento, alguns dos seus elementos mais emblemáticos, como a Oliveira e
o Padrão. Tudo isto num tempo em que a cidade se vai tornando menos amiga das
crianças e dos velhos e vai deixando que algumas das suas principais marcas, a
cultura e a vivência cívica empenhada e solidária, sejam progressivamente
substituídas por uma nova sociabilidade, vendida ao copo.
E temos boas
razões para recear que por aí também possa ir a outrora pouco acolhedora Rua de
Couros, com todas as ruas de que se compõe.

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