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| Berços. (Gerada por IA) |
“Vi lá em baixo, entre florestas e jardins, o berço da monarquia,
a faustosa cidade que teve academia de sábios, que rivaliza com as mais
graduadas, em seu tempo, na capital.”
Camilo Castelo Branco, no Discurso Preliminar das Memórias do
Cárcere (1862)
O
nascimento de um país não se explica facilmente.
A
independência nacional resulta um processo longo e complexo, feito de
aspiração, identidade, acaso, conquista, separação, negociação, reconhecimento.
Como escreveu José Mattoso, “uma Nação não tem registo de nascimento: vai-se
formando de forma tão lenta e progressiva, passa por tantas metamorfoses, que
não é possível dizer exatamente quando nasce”. Sendo impossível, pela sua
complexidade histórica, a expressão racional do processo de nascimento de uma
nação, recorre-se à representação simbólica — a metáfora do berço, que associa uma
personalidade (Afonso Henriques), um acontecimento histórico (a Batalha de S.
Mamede), um monumento (o Castelo) e um lugar (Guimarães), que serve para
explicar a constituição e o aprofundamento do sentimento de identidade
nacional. Uma metáfora que se revela com a força de palavras que exprimem
ideias que extravasam o seu significado literal: A Primeira Tarde Portuguesa, Aqui
Nasceu Portugal, o Berço de Portugal.
A
autoria da expressão A Primeira Tarde Portuguesa tem estado na origem de
equívocos que temos visto frequentemente replicados. Manuel Alegre, que a
descreveu como uma “belíssima expressão que podia ser um verso” — e até a
incluiu num poema — equivocou-se quando afirmou que o seu autor “é Alexandre
Herculano e não, como já foi escrito, o Professor José Mattoso”. Herculano
nunca a empregou e Mattoso fez dela o título de uma notável conferência que proferiu
em Guimarães no dia 24 de junho de 1978, mas sem deixar de a creditar àquele
que a concebeu, numa nota em que remete a sua origem para um “painel da autoria
de Acácio Lino, que representa a batalha de S. Mamede e se encontra no Palácio
da Assembleia da República”. A Primeira Tarde Portuguesa é uma expressão
cunhada para legenda de um quadro que Acácio Lino pintou em 1922.
Ao
dístico Aqui Nasceu Portugal, que está inscrito, desde a década de 1970, na única
torre da antiga muralha de Guimarães que chegou aos nossos dias, também foram
atribuídas diversas paternidades, havendo mesmo quem sustente que foi burilado
por Salazar. Não foi. O verdadeiro autor dessa expressão, que reúne os
fundamentos da identidade vimaranense, é Agostinho de Campos, portuense que foi
jornalista e escritor e que ainda viria ser professor de Filologia Românica nas
universidades de Coimbra e de Lisboa. A sua revelação foi testemunhada pela “escolhida
e ciosa” assistência da conferência que fez na Sociedade Martins Sarmento, no
dia 28 de novembro de 1927, intitulada “As pedras falam — Portugal visto de
Guimarães”, onde disse:
“Palavras, leva-as o vento — diz um provérbio. E eu direi que as
palavras que o vento menos leva, são as que nos dizem as pedras que estão ao
vento.
“Quantas brisas, quantas ventanias, quantas tempestades não têm
bafejado ou chicoteado as pedras do vosso castelo, e vede se a linguagem delas
se calou, ou se, pelo contrário, não é cada vez mais forte, cada vez mais
retumbante, cada vez mais solene, a voz com que essas pedras vos dizem e nos
dizem: Aqui nasceu Portugal!”
Finalmente,
o Berço, com o sentido de lugar onde se começou a afirmar a independência do
país, tem um uso mais antigo, sendo interessante observar os efeitos do curso
do tempo e das modas nas palavras que têm acompanhado a sua transformação.
Durante séculos, Guimarães foi o Berço da Monarquia, na verdade mais por
associação ao nascimento de Afonso Henriques do que ao feito de S. Mamede. Com
a aproximação e a instauração da República, somente os monárquicos continuaram
a usar essa expressão, entretanto substituída por Berço da Nacionalidade ou
Berço da Nação (fórmula que seria a preferida durante o Estado Novo). Nos dias
que correm, prevalece a expressão Berço de Portugal, recorrente a partir de
meados da década de 1920, mas que encontrámos, pela primeira vez, na obra “Guimarães
Agradecido”, de 1747, que Tadeu Luís António Lopes de Carvalho Camões dedicou
à estadia em Guimarães do arcebispo D. José de Bragança.
Se
dizemos que aqui nasceu Portugal, é porque foi em terras de Guimarães que
aconteceu a primeira tarde portuguesa, permitindo-lhe afirmar-se como a cidade berço
da nacionalidade.
Mas
convém nunca esquecer, como parece andar esquecido, que, muito antes de haver
Portugal, houve mãos devotas e delicadas que cortaram, entalharam, uniram e
afagaram, com brandura e paciência, a matéria bruta com que se fez o berço metafórico
que o haveria de acolher. Se o berço é Guimarães, foram as mãos fundadoras de
Mumadona que o criaram.
O
seu a sua dona.

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