
Memória e amnésia.
(Gerada por IA)
Tenho fascínio pelos complexos mecanismos que regem a capacidade humana de reter, armazenar e evocar informações. Na investigação histórica, confronto-me frequentemente com informações que pessoas credíveis guardam na memória sobre factos que viveram que não resistem ao confronto com outras fontes. As memórias que guardamos são o que sobreviveu ao filtro do esquecimento, já que o cérebro humano não tem capacidade para racionalizar e arquivar todas as informações que lhe chegam. A memória é, portanto, uma complexa construção do pensamento, afeiçoada por cortes, recortes e alguns acrescentos. Foi por perceberem que a memória não é inteiramente fiável que, para fortuna dos historiadores, os homens inventaram a escrita e começaram a registar por escrito as memórias que não queriam esquecidas.
Mas, no género humano, há um outro problema de
memória, composto de desconhecimento do passado e de narcisismo, que tende a assumir
que o mundo começou no dia em que abrimos os olhos e que, antes de nós, era o
caos, o deserto, ou o nada. Podendo dar muitos exemplos deste erro de
perspetiva, que é comum entre políticos, ilustro-o com o título de capa do
último número do Jornal de Guimarães, que nos introduz a algo que
desconhecíamos que tivesse ocorrido: o “nascimento de uma Guimarães cultural”, algures
na última década do século XX, por obra e graça de quem tão candidamente o revela.
Não questiono que aquele tivesse sido o objetivo sonhado por quem concebeu o
projeto de que ali se fala. Mas, como quase sempre, ficou uma grande distância
entre o sonho e a realidade demonstrável. Não nego que aquele possa ter sido um
momento marcante na vida dos nele envolvidos, mas a verdade é que nada de
estrutural modificou na vida cultural da cidade. Não foi além de um epifenómeno
que quase passou despercebido, acabando por ganhar mais visibilidade pública
com as controvérsias e os desentendimentos que o acompanharam à dissolução. Foi
algo que podia ter acontecido, mas que, manifestamente, não aconteceu.
Já várias vezes escrevi sobre este assunto, assim
como sobre a presunção de uns quantos que, tendo sido convidados para trabalhar
em Guimarães, não tardaram a colocar-se no pedestal de civilizadores dos
aborígenes. Para não me repetir, transcrevo algo que publiquei em 2011, num momento
atribulado da vida cultural vimaranense — o da preparação da CEC2012:
“Alguém que aterre repentinamente em Guimarães é
capaz de demorar a perceber a dimensão cultural desta cidade, tendendo a
subestimá-la. Nestes últimos dois anos, sobram-nos os exemplos dessa atitude. A
pretexto da Capital Europeia da Cultura que aí vem, não faltou quem se
atribuísse a si próprio a nobre missão de evangelização cultural deste
território de bárbaros, encarregando-se de trazer as luzes da civilização aos
brutos que viam em nós. E logo concluíram que, além de brutos, seríamos
difíceis (“como é difícil trabalhar com esta gente”, iam murmurando por aí) e
mal-agradecidos, já que não nos ajoelhávamos perante a imensidão da sua
sabedoria, nem elevávamos ao céu cânticos de congratulação e de reconhecimento
pelo seu esforço inglório para nos ensinarem aquilo já sabíamos. Se há marca
distintiva de Guimarães, é a que resulta da dimensão e da consistência da sua
vida cultural. Que não vai começar amanhã, nem começou ontem. Esta é a terra de
Martins Sarmento, de Alberto Sampaio, de João de Meira, de Raul Brandão, de
Mário Cardoso, de Alberto Vieira Braga, de Santos Simões, de José de Guimarães.
Não foi por acaso que Guimarães ganhou o direito ao título de Património
Mundial, nem foi por obra dos novos evangelizadores que esta cidade adquiriu o
privilégio de ser Capital Europeia da Cultura. Aquelas são distinções que
alcançou por aquilo que tem sido desde o último quartel do século XIX: uma
cidade que valoriza o seu património e que aposta na cultura.”
Guimarães
tem uma tradição de democratização da cultura que se começou a forjar em 1835, com
a efémera Sociedade Patriótica Vimaranense, e teve o seu impulso transformador
em 1881, com a fundação da Sociedade Martins Sarmento, nascida para promover a
instrução popular e para ser o epicentro do movimento de elevação cultural, assente
na vitalidade da sua rede de associações, que levou o político republicano,
escritor e bracarense Manuel Monteiro a incitar os seus conterrâneos, no
primeiro número da revista Mínia (1944), “a
secundarem e ampliarem o exemplo vimaranense”.
Um
exemplo que se manteve nesta terra pelas décadas seguintes, onde ainda haveria de
emergir uma figura que teria um papel único na sedimentação do movimento
cultural vimaranense, tocando decisivamente todas as suas vertentes. Chama-se
Santos Simões e não haverá nesta cidade quem não reconheça a relevância da sua
ação cultural. Nunca se lhe ouviu reivindicar a paternidade de uma Guimarães
cultural.
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